quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O relatório da Comissão Nacional da Verdade é um mapa para avançar

 Há pouco mais de 40 anos, Dilma Rousseff estava encarcerada, vítima de torturas e certamente temendo pelo seu futuro. O horizonte à sua frente e de todos os seus companheiros e companheiras prenunciava-se negro.

Hoje, na então inimaginável condição de Presidente da República, recebeu o relatório da Comissão Nacional da Verdade identificando  os responsáveis pelas tenebrosas práticas daqueles tempos obscuros.

Natural a sua emoção, o seu choro, num momento em que a história do País e a pessoal se sobrepõem e evidencia-se o improvável  contraste entre presente e passado.

Natural, num momento de restauração da verdade  histórica,  crucial para o País,  e também para todos que viveram aqueles horrores e seus familiares – especialmente  para os dos que não sobreviveram.

As duas principais recomendações do relatório  são de grande impacto:
1-Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985);

2-Determinação da responsabilidade jurídica (criminal, civil e administrativa) dos agentes públicos que causaram graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado,

As Forças Armadas brasileiras ainda resistem a aceitar as suas responsabilidades nos desatinos ocorridos entre 1964 e 1985, o primeiro deles o próprio golpe com que abriram as portas do poder.

Comportam-se como uma força política legítima que cumpriu um papel no desenvolvimento social e econômico do país. Apesar de serem um braço do Estado, dão- se ao direito de interpretar a história do país a partir de seus próprios conceitos e doutrinas, o que é uma evidente inversão hierárquica. A partir dessa visão, julgam que seu passado é inquestionável. Adotam o discurso de que a Lei de Anistia foi uma das pedras basilares que possibilitou a vigência do atual regime democrático, ao qual se amoldam, portanto nada há questionar a respeito dos tempos do regime militar.

Todo pacto reflete o equilíbrio entre as forças politicas e sociais no momento em que ele é aprovado. Com a Lei da Anistia não foi diferente. Foi a porta de saída aceita pelas Forças Armadas no momento em que a sustentação ao regime militar estava em seu ponto mais baixo e as oposições ganhavam a cada dia mais representatividade nos parlamentos e nas ruas. A Lei da Anistia foi o instrumento para acelerar a transição do poder militar para o civil, abençoado pela tradição conciliatória típica do Brasil. Partiu-se para um novo regime, deixando-se muitas feridas para trás.

As sociedades são dinâmicas, evoluem (às vezes, involuem). As forças políticas se transformam, mudam suas posições relativas entre si, formam-se novas maiorias, consensos se modificam. Com o aprofundamento da democracia no Brasil e o exemplo de outras nações, solidificou-se no país a noção de que não era justo deixar impune o uso da tortura pelos aparelhos repressores da ditadura militar. Nada  justifica crimes contra a humanidade, como é classificada globalmente a tortura.

Nada, nem guerra. Os militares aferram-se à justificativa de que estavam em guerra interna contra a subversão, contra o comunismo, combatiam grupos armados. Cabe a pergunta: de quem foi a violência original? Quem cassou mandatos, prendeu parlamentares, sufocou o debate  político, proibiu partidos, censurou, torturou, exilou, empurrou jovens  para a ilusão da luta armada?

Qualquer sociedade reage a um círculo vicioso de autoritarismo desse quilate e foi o que ocorreu no Brasil. Ao se aferrarem a esse conceito, os militares tentam legitimar o seu antigo regime. Mas a sociedade brasileira contemporânea não reconhece essa legitimidade – e mesmo, no passado, não a reconhecia, mas a suportava diante da força da repressão política.

Noticia-se que os militares enviaram vários recados ao governo, manifestando desagrado pelo conteúdo do relatório contundente do relatório.

Noticia-se, também, que há correntes favoráveis a retirar  os crimes de tortura, pelo menos, do guarda-chuva de proteção de Lei de Anistia.

O ministro Luís Roberto Barroso manifestou, nesta quarta-feira, 10/12, que o STF  deve reanalisar sua decisão de 2010, quando reconheceu a constitucionalidade da lei. Ocorre que ela se choca com decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que o Brasil subscreve, o que motivou a sugestão de Barroso.

Diante das sugestões  do relatório da Comissão Nacional da Verdade a discussão não tem como deixar de caminhar. Já passou da hora, são quase 30 anos de democracia. O tabu precisa ser superado, pois não faz sentido que os militares imponham limites à ação do Estado ao qual devem disciplinada obediência.  Como já disse, é uma injustificável inversão de hierarquia, num país que já promoveu o impeachment de um Presidente da República

Um comentário:

  1. "De quem foi a violência original?" Essa é a pergunta chave. Os militares alegam que em 64 impediram um golpe de esquerda. De facto, existiam movimentos na Esquerda destinados a subverter a ordem institucional. Penso que se houvesse um desejo genuíno de esclarecimento (e parece que ainda estamos muito próximos dos acontecimentos para que isso seja possível), as forças que lutaram contra a ditadura deveriam reconhecer certas verdades para tornar possível a busca da Verdade. Por exemplo, reconhecer que a maioria das forças contrárias à ditadura não lutava por democracia. A organização a que pertenci e muitas outras lutávamos pela ditadura do proletariado. Há mortes a computar no passivo da Esquerda. Inclusive justiçamentos.Qual o problema de reconhecer esse facto e oferecê-lo ao juízo da sociedade atual? O sectarismo esquerdista não admite nada disso. Mas cobra dos militares a aceitação do facto, também incontestável, de que foi criada toda uma organização militar para a tortura. Ela não foi episódica e representada por factos isolados. Quem sabe daqui a algumas décadas tudo isso possa ser esclarecido sem paixões. Mas tudo indica que essa Comissão da Verdade não contribuiu muito para se chegar a esse ponto.

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