quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Ulysses, O Senhor Diretas – 100 anos


“Avec des si on mettrait Paris en bouteille”

Frasista inspirado e autor de discursos memoráveis, o provérbio francês era um dos preferidos de Ulysses Guimarães. Usava-o sempre que alguém se punha a especular, com ele, sobre as tendências do momento político.

SE a emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas fosse aprovada o então presidente do PMDB teria realizado seu sonho de ser Presidente da República. Nessa hipótese, era imbatível. Mas a emenda não passou e o outro SE se configurou, a eleição pelo Colégio Eleitoral, ambiente favorável ao então governador de Minas, o conciliador Tancredo Neves.

Ironia da história, nenhum dos dois chegou lá. Tancredo foi eleito, mas não tomou posse, traído por um tumor que o levou à morte. Ulysses tentou nas eleições de 1989, mas seu momento havia passado.

Neste 6 de outubro, comemora-se o centenário de nascimento de Ulysses. Recordá-lo não é apenas homenagear um dos grandes políticos brasileiros, um dos maiores líderes da resistência e superação da ditadura militar. É, também, lamentar a atual escassez de lideranças do mesmo quilate no cenário nacional.

Tive o privilégio de ser assessor de imprensa de Ulysses em um de seus momentos mais fulgurantes, o da liderança da campanha pelas eleições diretas. Acompanhei-o pelo Brasil e nesse périplo tive a oportunidade de ver de perto um grande político em ação.

Ganhei assento nas reuniões de domingo à noite na casa de Ulysses, em São Paulo, na rua Campo Verde, 418, em Pinheiros, uma das vias que ligam a Marginal Pinheiros à Av. Faria Lima, entre os shoppings Iguatemi e Eldorado. Casarão típico dos anos 50, ainda está lá, tinha os confortos de uma família de classe média alta, mas sem qualquer ostentação. Numa época em que muros já eram levantados pelos paulistanos, as portas abriam para o pequeno jardim que levava à calçada.

No segundo semestre de 1983, a economia acumulava problemas, por isso o “Conselho Econômico” de Ulysses era presença obrigatória nas reuniões de domingo: Luciano Coutinho, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Melo, tríade da heterodoxa escola de economia da Unicamp. Uma vez ou outra apareceu por lá a mestra de todos eles, Maria da Conceição Tavares, que esquentava o ambiente com seu modo exaltado de se expressar, apimentado por palavrões aqui e ali. Prognosticava-se uma grande quebradeira de empresas para 1984. O fato foi que, em 1984, último ano do governo militar de João Figueiredo, o PIB cresceu 5,4%.

O tema político principal era, claro, a possibilidade de se conquistar as eleições diretas para a sucessão do Presidente Figueiredo. No Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, Franco Montoro, eleito diretamente em 1982, como todos os mandatários estaduais, estava em posição vantajosa para ser candidato a presidente, se, sempre o SE, as eleições fossem diretas. Tancredo, no Palácio Liberdade, em Belo Horizonte, também.

Ulysses, que nunca se candidatara a cargos majoritários, mas havia sido anticandidato no Colégio Eleitoral, em 1973, contra o general Ernesto Geisel, tinha nas mãos a máquina nacional do PMDB para se colocar nessa corrida. As conversas com os políticos se concentravam em Brasília, claro, mas os peemedebistas que passavam por São Paulo nos fins de semana também batiam ponto na rua Campo Verde nos domingos à noite. Fernando Henrique, já senador, esteve lá só uma vez nesse período, que eu me lembre, pois estava mais próximo de Montoro.

Ulysses costumava fazer anotações em pequenos bilhetes que guardava nos bolsos do paletó. Certo dia de dezembro de 1983, no gabinete da presidência do PMDB, na Câmara dos Deputados, encerrou uma conversa ao telefone, pegou um papelzinho, escreveu Curitiba, Porto Alegre e Camboriú, e o colocou num bolso. Estava ali o roteiro dos comícios das diretas liderados pelo PMDB, que seriam realizados em janeiro de 1984.

O primeiro de todos havia sido puxado pelo PT, em novembro de 1983, na praça em frente do estádio do Pacaembu, em São Paulo. Durante o comício, com público regular, o senador Fernando Henrique Cardoso anunciou, com voz grave, o falecimento do Menestrel das Alagoas, o combativo Senador Teotônio Vilela, que abandonara o apoio ao regime militar. Ele era um símbolo expressivo da erosão do apoio político ao regime militar e perambulava pelo País pregando eleições diretas para a Presidência da República.

Ulysses não reinava sozinho no PMDB, partido que reunia de autênticos, que combatiam com dureza o regime militar a moderados, como Tancredo Neves. O governador de Minas Gerais, naquele momento, emplacou um representante seu, o senador paranaense Afonso Camargo, na secretaria geral do partido. Ex-arenista (da Arena, o partido que apoiava a ditadura, sucedido pelo PDS), Camargo migrara para o PMDB e precisava legitimar-se no partido.

Quando o roteiro dos comícios tornou-se público, Camargo saiu na frente, mobilizou uma agência de publicidade de Curitiba, a Exclam, e desembarcou na rua Campo Verde com um logotipo para a campanha, as singelas pinceladas verde e amarela e o slogan “Eu quero votar pra presidente”. No dia seguinte, estavam estampados nas capas de todos os jornais.

É fato conhecido que Curitiba foi escolhida para dar a partida na campanha por ser, pelo menos na época, a cidade onde as corporações faziam pesquisas sobre aceitação de seus produtos, por ter uma população bem distribuída entre todas as classes sociais. Graças ao empenho do governador do Estado, José Richa, do presidente do PMDB estadual, Álvaro Dias e de Afonso Camargo, 40 mil pessoas lotaram a Boca Maldita, espaço tradicional das manifestações políticas na capital paranaense.

Lembro-me bem que, já iniciado o comício, chegou o governador Franco Montoro e sua entourage, olhos brilhando ao constatar a multidão que lotava a Boca Maldita. Foi plantada ali a semente que gerou o comício de São Paulo realizado no dia 25 de janeiro,

Depois de Curitiba, enquanto a caravana das diretas serpenteava pelo Sul, onde foi realizada uma passeata na rua da Praia em Porto Alegre e um comício em Camboriu, discutia-se animadamente em São Paulo se haveria tempo e condições para organizar um comício no dia do aniversário da cidade, 25 de janeiro. Havia o risco de se promover uma manifestação que não se mostrasse à altura da força de São Paulo, o maior Estado da federação.

No QG de Ulysses, na rua Campo Verde, havia ceticismo em relação ao êxito do comício, na verdade uma certa ciumeira. Pois bem, no Palácio dos Bandeirantes, Franco Montoro pôs a máquina do governo a trabalhar, o PMDB paulista foi atrás, os demais partidos de oposição também, mais sindicatos, entidades da sociedade civil, artistas, intelectuais, imprensa, em especial a Folha de S. Paulo.

Resultado: 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé, clamando entusiasticamente por eleições diretas, aplaudindo freneticamente os oradores. Fotos panorâmicas da multidão, encimada pelas torres da Catedral da Sé, dominaram a capa dos principais jornais e das revistas do País. O Jornal Nacional noticiou o comício como parte das comemorações do aniversário de São Paulo. Um marco, apesar de discreto, pois os comícios anteriores haviam sido mencionados nos noticiários locais das afiliadas da Globo.

A partir daí, a campanha incendiou o país, comícios se multiplicaram pelas capitais e cidades mais importantes, com Ulysses como comandante, sempre escoltado de perto por Tancredo e Montoro. Lula marcava presença. O comício do Rio de Janeiro, na Candelária, organizado por Brizola, e o segundo em São Paulo, no Vale do Anhangabaú, foram os pontos altos da caminhada, reunindo um caudal de um milhão de brasileiros cada.

Num dos comícios no Nordeste, não me lembro exatamente qual, Ulysses me disse ao ouvido. “Serrano, peça ao locutor que me anuncie como o Senhor Diretas”. Alguém se referira a ele assim, de passagem, num jornal e Ulysses, com sua sensibilidade política, imediatamente percebeu que seria uma marca perfeita para sua jornada.

Assim o “Senhor Diretas” liderou uma das mais belas páginas da história política brasileira. Fortaleceu ainda mais o prestígio e o respeito que a população já nutria por sua figura, algo quixotesca, mas absolutamente necessária para lançar estocadas a um regime militar que já se estendia por 20 anos, acumulava fracassos, mas resistia em retirar-se. E teve raízes para barrar as eleições diretas para Presidente em um Congresso ainda manietado por duas décadas de manobras autoritárias.

Mas foi a campanha liderada pelo “Senhor Diretas” que abriu a possibilidade de que seu “alter ego”, o conciliador Tancredo Neves, minasse o regime por dentro e conquistasse a Presidência pelo tortuoso caminho do Colégio Eleitoral, anunciando uma “Nova República”. Como se fosse aliado do regime moribundo, o destino pregou uma peça nos brasileiros, tirou Tancredo de cena e abriu as portas para que seu vice, Sarney, oriundo da velha República, ocupasse o Planalto.

Diante do imprevisto e inesperado, coube ao “Senhor Diretas” manter a chama acesa, liderando, estimulando, moderando os intensos debates políticos que fizeram nascer, três anos depois, a “Constituição Cidadã”, sacramentando, entre outros direitos dos brasileiros, a eleição direta para a Presidência da República.

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